Liev Tolstói (1828-1910) e Franz Kafka (1883-1924) nos apresentam obras com histórias similares. Enquanto um constrói uma história de morte e reflete sobre o significado da vida, o outro fala sobre isolamento e solidão.
Não sei se Kafka leu e se inspirou na obra de Tolstói, mas os elementos da história são os mesmos, com alguns usos distintos. Kafka foca no isolamento e solidão do seu personagem, mas usa sua transformação em um monstro como justificativa para suas consequências. Tolstói coloca uma grave enfermidade no seu personagem para desenrolar a história, e desenvolve outras questões do que somente isolamento e solidão. Não só isso, ele usa fatos reais e humanos, como doenças, trabalho, amizades, dinheiro e família. Kafka também fala sobre família e dinheiro, porém, transforma seu personagem em um monstro grotesco. É melhor fugir da realidade do que encará-la. Escolhe o caminho mais fácil.
Há uma diferença nos livros sobre as classes sociais dos personagens. Greg Samsa (Kafka) trabalha em um emprego humilde e sustenta, sozinho, toda sua família. Quando se vê transformado em um monstro, se desespera ao saber que não poderá trabalhar e sustentá-los. Já Ivan (Tolstói), possui bons empregos, amigos importantes e vive uma vida confortável. Quando ambos os personagens adoecem, a preocupação com o trabalho é a primeira coisa que lhes vem à cabeça, mas enquanto um se preocupa em sustentar sua família, o outro se preocupa em sua posição social. O dinheiro importa mais para Greg, como uma questão de sobrevivência; já para Ivan, o importante é manter o emprego como status social, e ser o provedor de sua família.
Tolstói consegue explorar melhor a classe social de Ivan como parte importante da história, até por ser, como autor, também integrante dessa classe. Talvez Kafka não tenha conseguido se aprofundar tanto em Greg, por justamente ser mais semelhante a Ivan, do que a seu próprio personagem. Não é necessário viver uma realidade para escrevê-la, mas nesse caso, fica evidente que há uma limitação ali. Kafka só consegue ir até certo ponto.
As pessoas se lembram de Metamorfose pelo livro do “homem que se transforma em barata”, e esta mesma lembrança, é também o calcanhar de aquiles da história.
Há algum tempo, vi o escritor brasileiro Lourenço Mutarelli falando sobre filmes que lidavam com problemas da vida e da mente, e externou seu incômodo quando eles eram resolvidos por luta física ou o clichê da justiça com as próprias mãos. Segundo ele, o que o incomoda é quando há um personagem que usa uma luta como Kung-Fu, para enfrentar seus problemas, que no caso, são resolvidos batendo em outras pessoas. É mais difícil enfrentar a realidade de encarar seus próprios problemas mentais. É mais fácil colocarmos o personagem de Oldboy (2003) aprendendo Kung-Fu e espancando 15 pessoas sozinho, do que lidar com todos os seus traumas. É mais fácil para o diretor e roteirista, pensar em coreografias de luta, do que escrever sobre as questões humanas.
*Oldboy é excelente, assistam! Mas a observação do Mutarelli é bem interessante. Falo de Oldboy porque foi o exemplo que ele deu, mas seria mais correto citar qualquer filme de ação do Stallone.
*O contraditório é que Lourenço Mutarelli gosta muito de Kafka, e ilustrou uma das impressões de Metamorfose.
Para o criador, seja ele escritor, diretor, roteirista; é mais difícil escrever e externar os sentimentos humanos, e atingir um lugar mais profundo de nossa psique. Transformar Greg em um monstro, é o Kung-Fu de Kafka. Se este homem é literalmente um monstro, uma barata gigante, a história fica presa a isso. Para qualquer acontecimento, pensamos, “ele é uma barata gigante”, e pouco importa o que Greg pensa a partir daí. Perde-se qualquer conexão com o personagem, a partir do momento em que ele vira um monstro. Há uma fagulha de esperança que Greg volte a ser um ser humano normal, e esse é o sentimento que nos leva ao final do livro.
Até quando Kafka quer nos mostrar a dificuldade financeira de Greg e sua família, não dá para não pensar como sua reação soa falsa. Que pessoa, por mais desesperada que esteja, pensaria em ir ao trabalho após se ver como um monstro no espelho? Se há uma metáfora em Metamorfose, fica além da fama que o livro possui. Metáforas como Kung-Fu em filmes de luta, pelo menos são divertidas.
A Morte de Ivan Ilitch não pega atalhos. Ivan sai de uma posição de prestígio e ambição, para um ser moribundo e desprezado. Enquanto encara a morte de perto, ele se torna mais ciente sobre a própria vida. Ivan não é, não era, e não se transforma em um monstro ficcional, ele se degrada fisicamente e psicologicamente como todo ser humano. Ao perceber a morte se aproximando, ele se apega a quem era um próximo distante, seu criado; e se afasta e questiona tudo que havia construído, como esposa, filhos, amigos, emprego e prestígio. Esse cara rico, da alta classe russa, possui tudo e nada, vira rapidamente um peso morto para os que o cercam; mas ainda assim, há uma redenção interna para Ivan. Quando chega o momento de sua morte, ele parece minimamente tranquilo consigo, e já não parece se importar com o que deixou de legado ou o que pensam dele. Greg Samsa não possui redenção, ele é desprezado até a sua morte e não há alívio.
Quando descobrimos que Franz Kafka contraiu tuberculose na vida real, e Metamorfose poderia ser baseado nisso, a obra toma outro significado. O monstro no caso seria ele. Porém, como eu sempre acreditei em analisar algo pelo que ele é, e não por seu contexto, o livro de Tolstói continua mais forte e verdadeiro. Não precisamos saber nada da vida pessoal de Tolstói para exaltar A Morte de Ivan Ilitch. Bastidores de uma obra servem para complementar e entendermos o contexto em que ela foi escrita, e não para nos fazer gostar dela ou entendê-la.
Dois livros de grande relevância, com histórias similares em sua essência, mas é o livro de Tolstói que se sobressai como algo que realmente vale a pena ler e reler.