Com a recente morte do diretor David Lynch, me veio à cabeça uma das grandes questões que envolvem o seu trabalho como diretor: entender o filme.
Ele foi marcado por desenvolver filmes, músicas e a série Twin Peaks, todas baseadas em um ambiente muitas vezes surreal e irreal, de difícil compreensão. Mas aí que se encontra o nosso nó. Nós necessariamente precisamos entender uma obra?
Há pouco tempo, quando terminei o livro do argentino Julio Cortázar chamado “Historias de Cronopios y de Famas”, me veio a mesma questão do “entender”.
Terminei o livro, e 5 minutos depois, nada dele havia sido registrado na minha cabeça. Eu odiei, contei os minutos para acabá-lo; mas, será que o problema é comigo? O livro é mesmo ruim? Ou talvez o ponto não seja esse.
No caso de Cortázar, ele busca ser diferente, trazendo uma inovação na escrita. São capítulos curtos com temáticas sem pé nem cabeça. Há quem diga que o livro é divertido. Pérolas como “instruções para matar formigas em Roma” e “instruções para chorar”, são algumas frases que intitulam dois dos capítulos.
Cortázar é um dos escritores argentinos mais conhecidos, e a aclamação da sua obra possui algumas hipóteses; como o proeminente crescimento do gênero musical do rock and roll na Argentina, em paralelo com uma forte época de uma juventude mais rebelde e anti-sistema — tendo o começo do rock na argentina (1950), e o lançamento do livro (1962). Sendo que 10 anos após o lançamento, a Argentina passaria por uma das mais violentas ditaduras militares latino-americanas. Acredito que o contexto histórico pode influenciar as pessoas a gostarem de algo ou não. Já sabemos que épocas de repressão geram grandes obras artísticas, até pela dificuldade de burlar a censura, e a ávida busca pela liberdade do povo. Se o artista está dentro daquela sociedade, as coisas se misturam. Vira uma relação de oferta (obras contraculturais) e demanda (público reprimido).
David Lynch não teve a fama e proeminência de outros grandes diretores de sua geração, e jamais teria. Provavelmente, sem querer, Lynch se colocou em um nicho dentro de uma forma de fazer cinema e arte, pelo simples fato de ir ao contrário do que os seus companheiros estavam fazendo. Como seria se o pai do surrealismo, Luis Buñuel, fizesse filmes agora? David Lynch foi esse cara, e teve peito para isso. Fugiu de qualquer facilidade em fazer o cinema comercial, e desafiou as pessoas, colocando um surrealismo moderno no mainstream, coisa que quase ninguém conseguiu.
Existem situações em que “não entender” e “entender” são importantes ou não. Nos filmes de Lynch, o que sempre me incomodou foi a falta de histórias, e não era questão de entender a história, até porque não havia o que entender. Suas cenas surrealistas também não eram para entender, elas vinham para te causar outros tipos de sensações que o cinema comercial jamais irá nos causar. Quando Lynch consegue equilibrar os dois (história e o surreal), consegue criar grandes obras como o filme Cidade dos Sonhos (2001).
Talvez o ponto nevrálgico seja esse. Se não há uma ideia por trás, o que vemos são apenas estética e imagens, o que em uma pintura é aceitável porque a beleza de um quadro é subjetiva a percepção de cada um. Filmes e livros possuem mais elementos a serem explorados, e não se sustentam por si só, como algo “bonito”. Um conjunto de palavras não é algo bonito do ponto de vista comum, talvez filosófico até seja. Um filme sem história é algo oco; imagine um filme mudo sem história. Buster Keaton, Charlie Chaplin e Mr. Bean, todos os seus filmes possuem história, mesmo com seus personagens não dizendo uma única palavra, e mesmo que nenhuma pessoa os assista pela história, mas sim para se divertir e rir. Até na música, quando Hermeto Paschoal cria músicas através dos sons das águas de um rio, ele não está lá como um louco batendo e chutando as águas, ele faz isso com a harmonia de quem possui habilidade e talento para isso. Se nós, como leigos, quisermos um dia criar uma música experimental, a partir dos sons da água de um rio, aí sim, seremos considerados loucos, pois nada fará sentido, mesmo que algum som coerente saia desse experimento.
As pessoas confundem o que é diferente com o que é bom. Pensam que é fácil fazer “o diferente” e que fazer isso, é sinônimo de bom. É como a frase que costumeiramente ouvimos: “mas se fosse o Picasso todo mundo estava aplaudindo”. Como se um quadro criado por ele, tivesse saído do mais absoluto nada. Até o que é alternativo e diferente, há de ter uma ideia por trás.
Gosto dessa busca por ser diferente, mas não com a prepotência de ser único. Por mais tímido e recluso que um artista seja, ele vai querer o reconhecimento da sua arte; mas a ideia de “eu mereço” e “olha o que eu fiz” é utópica e infantil. Ninguém controla a recepção do público. Se essa matemática fosse exata, bastava sair copiando os artistas transgressores.
João Gilberto quando criou os primeiros acordes da bossa nova, estava criando algo diferente, talvez estranho à época. Somente sua persona, com seu tom de voz e estilo, poderia ter criado o que criou. Sua música só saiu como saiu, porque era João que tocava e cantava. Foi a sua marca registrada, copiada por uma geração de músicos e cantores. Essa novidade foi rapidamente bem recepcionada pelo público, mas como pensei na hipótese de Cortázar, talvez se a bossa nova tivesse surgido em outra época, ninguém teria se interessado. Há uma vasta variedade de fatores alinhados para que uma arte seja bem recepcionada, por mais que, a princípio, não se tenha um pleno entendimento do que exatamente é aquilo.
Talvez agora, na época em que vivemos, artistas como Lynch e Buñuel sejam cada vez menos compreendidos. Pelo momento da arte e histórico que vivemos, de muita liberdade (por mais que alguns defendam que não), artistas transgressores serão cada vez mais, vistos como estranhos. Nada mais parece chocar ou surpreender, e esse será um bom desafio para os artistas atuais: conseguir surpreender em um momento de absoluta sobriedade e empáfia da sociedade contemporânea e da arte. Olhemos para Rogério Skylab, com suas músicas que, em parte, são feitas com letras pornográficas e escatológicas. As pessoas não se chocam mais, e a reação mais comum, é rirem da música. Depois do funk carioca, a música do Skylab mais parece uma canção de ninar perto do que escutamos por aí. Ainda acredito que ele e alguns artistas, possuem uma transgressão na polida arte brasileira, mas pelo contexto em que vivemos, a força das suas ideias acabam não sendo tão poderosas como já foram. Se Skylab estivesse criando músicas no estilo bossa nova, como contemporâneo de João Gilberto, falando sobre LSD e sexo, aí sim teríamos um impacto muita mais poderoso que agora.
Há uma coisa também, que é a marca registrada de cada artista, o que o torna único. O estilo surrealista é uma coisa, mas Luís Buñuel, Salvador Dalí, David Lynch, são pessoas diferentes e únicas. O que vai sair do trabalho de cada um, pouco sabemos, não há como prever, e isso é o mais interessante. Mesmo com o efeito surpresa acabando quando já conhecemos esses diretores, imaginamos que virá algo usual. Fico pensando muito no primeiro público que entrou para ver um filme de Buñuel, as primeiras reações ao ver O Cão Andaluz (1929), no ano de lançamento. É muito frustrante quando assistimos um filme, ouvimos uma música e lemos um livro que se parece com algo que já conhecemos, me sinto enganado e que perdi o tempo. O grande barato desses artistas, é a surpresa do inesperado.
Nós temos que parar de querer entender demais; de querer ter certeza sobre tudo. É a grande praga dos analistas de filmes hoje em dia. No youtube, temos manchetes aos montes de “entendendo o filme” ou “entendendo a série”. As pessoas querem tudo mastigado, e por isso, pessoas como Lynch, não trabalhavam mais. Acredito, porém, que esses artistas ocupam uma parte da arte que nunca será mainstream, nunca competirá com o filme de super-herói da próxima semana. Eles nasceram para desafiar o público e nadar contra a maré, e seriam medíocres e infelizes não fazendo isso. Quando se escolhe esse caminho, é difícil ter o reconhecimento e atingir a massa, mas eu acredito que o legado se torna mais duradouro e o público mais fiel.
Escrevi um texto recente, sobre Nosferatu, novo filme de Robert Eggers. Eu o via como um cara transgressor que poderia vir a preencher essa lacuna no mainstream de forma mais moderna, assim como Lynch sucedeu Buñuel. Ele começou como um diretor que desenvolvia muito bem o misticismo, com cenas e histórias estranhas e instigantes, vide A Bruxa e O Farol. Com mais dinheiro e mais responsabilidade, seus filmes foram se tornando estranhos, mas agora de uma maneira ruim. Ficaram estranhos em relação ao que a gente esperava e viu de Robert Eggers. Ele pegou o atalho mais fácil, entregando histórias mastigadas, que muitas vezes não passavam de um amontoado de cenas “diferentonas”. Você entende tudo que está ali, mas fica de saco cheio, pois sempre há a sensação de que já viu aquilo em algum lugar. Ele fez uma escolha, se adequou aos estúdios, e virou mais um na multidão. Eggers até tenta mostrar o grande diretor que acha que é, mas fica tão acintoso que é constrangedor. Ele esquece qualquer história nos seus filmes, para criar cenas que chocarão as pessoas, seja pela perversidade ou pelo visual estético. Ser um artista é mais importante do que tentar mostrar que você é um artista.
Falamos agora de um grande diretor de verdade, o brasileiro José Mojica Marins, eternizado como Zé do Caixão. Se você assistir qualquer entrevista ou fala dele, vai perceber rapidamente que o seu cinema era muito baseado em suas intuições, ideias e talento. Ele tinha o terror como mote para os seus filmes, mas a construção de tudo era muito em volta de sua personalidade e conhecimento. Não era uma tentativa de parecer diferente e estranho, ele era isso. Mojica foi um dos artistas mais prejudicados pela ditadura e nunca teve o reconhecimento que merecia. Foi ridicularizado por uma elite que, essa sim, não entendia seu cinema, e não entendia o próprio Mojica. Ainda bem que tivemos Glauber Rocha para valorizá-lo. Mesmo que tardiamente, Mojica teve um reconhecimento, inclusive internacional, de uma grande geração de diretores. Tenho certeza que ele, com suas ideias esquisitas na cabeça, nunca pensou por um segundo sequer se as pessoas entenderiam os seus filmes.
Glauber e Mojica são dois dos maiores diretores de cinema que existiram, e tinham a peculiar maneira de dirigir os seus filmes com uma câmera na mão, e uma ideia na cabeça. Glauber teve a sorte de ser valorizado pela crítica, coisa que não ocorreu com Mojica. Essa crítica elitista é o que atrapalha e afasta as pessoas de filmes como os deles. Não são filmes para serem vistos de um pedestal como são colocados, e sim para serem vistos como filmes, puramente filmes, com o desafio de uma obra que não segue o caminho dos clichês, e que te desafia a pensar e sentir. Como Glauber abordava mais temas sociais, e era um cara estudado e político, seus filmes eram vistos como algo mais sofisticado, coisa que, acredito eu, nem ele mesmo queria. Mojica fazia filmes de terror, não tinha estudos, e seus filmes também tinham temas sofisticados; mas por ele ser quem era, por terror não ser bem visto, a crítica praticamente o ignorava por não ser algo que eles queriam ver. Mojica foi contra a maré do Cinema Novo, e sofreu por ser diferente, e pela crítica não entendê-lo.
O próprio público que gosta de Lynch ‘s, Mojicas e Glaubers, acaba afastando outras pessoas. Tentam separá-los do popular e colocá-los numa redoma para pessoas que gostam de “filmes difíceis de entender”. Entender uma arte ou não, pouco importa. Devemos sempre analisar o que foi feito ali, naquela determinada obra. É o equilíbrio das coisas.
Acredito que fazer arte que desafia, é muito mais difícil que consumi-la, por isso tão poucos conseguem. Andar nessa linha tênue entre parecer arrogante, ser brega, ser genial, ser idiota e fazer algo com que as pessoas pensem, não é para qualquer um. Caminhar sempre entre o entender e o não entender. Deixar nos perguntando se: “foi isso mesmo que entendi?”, “não entendi porra nenhuma mas gostei” e “entendi mas não gostei”. É o contraditório imperando, e mantendo esses artistas na relevância que lhes é devida.